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2010
DIÁLOGO COM MARCO BUTI

FLORA ASSUMPÇÃO

Novembro de 2009/ Abril de 2010

 

“Só é bom professor de arte quem é bom artista, porque além das linguagens da arte ele ensina [...] a dedicação, a capacidade de concentração, os valores éticos. Até seu gesto ensina...” 

[Regina Silveira. Fragmento de depoimento da artista citado em ‘Regina Silveira – O Olho e o Lugar’.]

 

Marco Buti, artista e, desde 1996, professor da Universidade de São Paulo (USP). Durante 5 anos atuou como chefe do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP, além de aulas ministradas e de alunos orientados na graduação e na pós-graduação.

Em 2008 apresentou sua tese de livre-docência “8.03. a Arte na universidade, a Universidade na Arte” no mesmo departamento, na qual analisa pontualmente diversas situações das artes inseridas no ambiente acadêmico e científico das universidades.

Na posição de artista graduada por esta escola, orientada por Marco Buti e reconhecendo-me como personagem participante de muitas destas situações que compõem a formação em artes visuais na universidade, inicio um breve diálogo com (insisto, ainda) meu professor orientador.

  

1) Logo no início de sua tese você detecta muito precisamente uma das raízes da problemática da arte inserida no contexto da universidade; você mostra que o problema é anterior à universidade, quando constata, através do resultado das provas de aptidão para o curso de artes visuais (divididas em 2 partes: uma teórica sobre história e crítica de arte e outra de desenho) que o conhecimento teórico sobre arte dos candidatos é limitado aos grandes ícones do modernismo brasileiro (Tarsila do Amaral), do cubismo (Picasso) e do Impressionismo (Monet) e que o pensamento visual dos mesmos é determinado pelo universo visual de videogames, quadrinhos, ilustrações de baixo nível e publicidade e logotipos. Afinal, se a escola de ensino fundamental e médio, principalmente a pública, desse alguma referência do que sejam as artes (e não apenas as visuais, mas também a música, a dança ou o teatro), os candidatos saberiam um pouco mais sobre as possibilidades da carreira que estão escolhendo. É corriqueira a justificativa da escolha do curso de artes visuais pelo gosto por animações, quadrinhos ou ilustrações e outros desenhos figurativos. Não que estes não possam ser motivos legítimos para a escolha do curso, mas estes evidenciam o apreço pela representação enquanto verossimilhança, pela dificuldade e qualidade técnicas superadas. E , acredito, é na valorização desta idéia de representação que consiste boa parte do equívoco do leigo sobre o que seja arte (contemporânea ou não) e suas necessidades enquanto curso na universidade e enquanto carreira... E este leigo, conforme você diz, é também o cientista, o professor titular que vai definir a verba e a infra-estrutura que um curso de artes pode ter... E ainda este leigo é aquele que vai analisar os resultados dos departamentos de arte nas universidades.  É um efeito bola de neve.  Como mudar isso? Até que esta mudança se introduza nas escolas, a universidade vai precisar continuar com as medidas paliativas caso a caso... 

 

Marco Buti - A única possibilidade que vejo para mudar isso é a introdução de fato do ensino da arte no ensino básico e médio, ou seja, com professores competentes (muito poucos até agora), carga horária e espaços adequados. Mas me pergunto se isso pode mudar, ou até que ponto. Não esqueçamos o papel de cada aluno em tudo isso. Creio que a escola deva oferecer uma informação mais completa sobre os ramos do conhecimento, mas cada estudante vai progressivamente fazendo suas escolhas, e muito do que se aprendeu provisoriamente é deixado de lado. Nós fizemos uma série de opções pela arte, e somos tão leigos em ciências, por exemplo, como a maioria dos cientistas em arte. Admitamos que a arte tenda a ser majoritariamente concebida como um entretenimento - a indústria cultural sabe disso muito bem. Não é nada comum se entender que pode ser um meio de conhecimento do mundo. Pode ser uma grande abertura, mas talvez não para todos. Creio que cada um deve ter a capacidade de escolher, e para isso, a arte deveria ser bem apresentada mais cedo, a todos, antes da opção universitária. Devemos respeitar a falta de interesse por algo que nos apaixona.

                Mas a questão é muito complexa, e tentarei não simplificar. Por outro lado, é quase impossível, hoje, não ter contato algum com a arte. Através justamente de “videogames, quadrinhos, ilustrações de baixo nível e publicidade e logotipos”. Ou através de dvd’s, cd’s, mp3, etc. Há pessoas que parecem passar o dia ouvindo música em fones de ouvido (mas que música?). Existe mesmo uma prática ingênua de artes visuais constante: retratos e auto-retratos com celulares ou máquinas digitais, filmagens. Não quero tomar posições a priori nem pretender falar em nome dos outros. Em todo esse universo visual podemos encontrar obras de arte legítimas, embora a imensa maioria seja mais do que discutível, mesmo mantendo alguma ligação com o que entendemos por arte. Suponho que o senso crítico dos espectadores tende a ser baixo, e pouco se percebe a existência de uma atitude estética, mesmo embrionária, uma tentativa de desenho, quando captamos nossa própria imagem frente a um determinado fundo. E voltamos à questão da escola. Seria impossível partir dessa experiência cada vez mais banal, e dar-lhe alguma consciência, inserindo-a na história do retrato? Seria impossível inserir o fundo frente ao qual se posa na história da paisagem? Quantos professores de ensino básico e médio seriam capazes de dar tais aulas, partindo de situações amplamente conhecidas e vivenciadas por muitos? Poucos. O celular é usado como meio por artistas, mas quantos professores de arte (e artistas) percebem a diferença entre curiosidade e arte? A arte é uma atividade de difícil definição.

                A falta de conhecimento dos enigmas e das ambigüidades da figuração influencia sim os equívocos quanto às artes visuais. Afinal, o que se vê mais facilmente são imagens a partir do Renascimento, e idéias toscas sobre sua superação no Modernismo. Se aceita a idéia de semelhança sem ter chance de comparar o retrato com o retratado. Esta experiência poderia ser possibilitada nas mesmas aulas sobre a história do retrato. Aí começariam a aparecer as diferenças e as ambiguidades. É comum a experiência de pessoas que pouco se reconhecem nas fotografias. Já conversei sobre isso com pessoas sem formação específica: mostraram-se perfeitamente capazes de entender os problemas envolvidos.

                Mas creio que existe outro fator mais poderoso para a influência de quadrinhos, videogames, publicidade, etc. no espectador: a multiplicação. Trata-se de imagens naturalmente pensadas para escala de produção elevadíssima, embora haja exceções. Há quadrinhos em edições pequenas, sem o acompanhamento do aparato publicitário. Mas no geral essas manifestações estão facilmente disponíveis, são até inevitáveis, enquanto se pode passar a vida sem entrar num museu ou galeria de arte. Na mesma mídia impressa ou eletrônica, poderíamos encontrar grande quantidade de imagens e informações artísticas, embora de forma desequilibrada, sem a profundidade desejável, e sem tanto acompanhamento da propaganda. Parece-me faltar um conhecimento inicial que estimule e capacite à busca, emancipe, e aí voltamos à questão da escola. Mas o interesse pela arte, no sentido que nós damos a esta palavra, não pode surgir de uma obrigação, nem se determina o nível desse interesse, ou se impede seu surgimento. Pode haver um interesse inconsciente por artes visuais em manifestações mais ou menos próximas, como design de moda, de automóveis, tatuagens, pinturas de pranchas de surf e skate, que geralmente não ultrapassam o anseio programado de originalidade e o símbolo de status. Tal interesse pode conduzir a outros níveis artísticos, mas mesmo com uma informação melhor na escola, creio que muitos continuariam optando apenas pelo entretenimento. Que tem sua importância, do qual por vezes necessitamos, e que pode estar presente sem conflitos em obras de arte autênticas.

                Quanto às mudanças nas Universidades, são difíceis, mas não impossíveis. Houve muitas mudanças significativas, embora ainda insuficientes, desde a implantação dos primeiros cursos de artes. Como chefe de departamento, tive oportunidade de dialogar com pessoas de outras áreas. Muitas se mostraram abertas ao diálogo, compreenderam perfeitamente nossas peculiaridades e nos apoiaram. Mas creio que a iniciativa só pode partir dos departamentos de artes, onde é difícil haver um consenso decidido a favor de mudanças efetivas.

  

2) Eu posso estar enganada, mas me parece que as artes visuais, no Brasil, são as mais elitistas das artes. Isso no sentido de serem as menos compreendidas e apreciadas. O mesmo não me parece acontecer com a literatura, a música, o teatro ou o cinema contemporâneos. Aqui falo mesmo em termos quantitativos: a sensação que tenho freqüentando estes meios é de que a elite cultural que aprecia os assim considerados ‘boa literatura’, ‘boa musica’, ‘bom teatro’ e ‘bom cinema’ é bem menos reduzida do que a dos apreciadores de arte visuais contemporâneas. Também a arquitetura e a dança contemporâneas são mais compreendidas. Creio que essa situação se deva, em parte, à impossibilidade de acompanhar as mudanças que as artes visuais sofreram. Salvo exceções, as elites culturais apreciadoras das artes visuais pararam nas vanguardas modernas ou têm dificuldade em distinguir entre moderno e contemporâneo ou se deslumbram com os modismos equivocados e passageiros nas artes visuais contemporâneas. Hélio Oiticica e Lygia Clark ou Waltércio Caldas e Julio Plaza não são tão conhecidos quanto Tarsila ou Villa-Lobos. Um exemplo rápido que considero esclarecedor: Tarsila e Villa-Lobos têm uma página dedicada na Wikipedia (a enciclopédia livre online), mas Caldas e Plaza não têm. Arnaldo Antunes, Lars Von Trier, Teatro Oficina, Ruy Ohtake ou o Grupo Corpo também têm sua página na Wikipedia. Experimentando buscar os nomes dos artistas contemporâneos brasileiros e de outros países que estão nas exposições de repercussão internacional os resultados se repetem; os brasileiros são os que não têm suas respectivas páginas. Creio que este quadro não seja apenas resultante das desigualdades financeiras para a repercussão das artes visuais nos diversos países, mas também do caráter de atividade desconhecida dos artistas visuais no Brasil hoje... É comum que o leigo ainda pense que o artista é apenas aquele que desenha, pinta ou ‘faz estátuas’ (escultura).  O elitismo das artes visuais é a possibilidade que resta, já que começa no pouco entendimento do que seja arte, existente dentro da própria universidade, que seria um meio social que supostamente deveria legitimar a formação do artista enquanto profissão. 

 

      M.B. - No texto de minha livre-docência, começo citando um texto de Eric Hobsbawm, onde o autor frisa que as artes visuais despertam um interesse minoritário na sociedade. Talvez seja inevitável. As artes visuais têm uma forte tradição ligada à obra única, que muitas vezes tem como destino ser subtraída à visão pública, ao menos por um período. É um objeto que pode ser fisicamente possuído, embora ilusoriamente. Pode ser encomendado e guardado. No limite, com alguma ironia, é viável que o público da obra única seja também único: o comprador. A obra única limita seu público, e vivemos, há muito mais tempo do que parece, uma época na qual as obras podem ser fruídas em casa, embora de modo menos completo. É a multiplicação que torna a obra mais pública, mesmo a única. Há um grande número de tentativas de inserir a obra de arte no espaço público, entendido fisicamente,tentando, ao menos no discurso, não ser mais uma manifestação do poder. Mas o espaço público é também mental, imaterial – começa na percepção. Este é mais difícil de ocupar. Além disso, boa parte dessas tentativas se constitui de obras efêmeras, expostas a outras intervenções ou mesmo à destruição, limitando ainda mais o contato. Muitas acabam sendo colocadas no espaço real da metrópole apenas para sumir, engolidas por uma situação sensorial poderosíssima, evidenciando a falta de conhecimentos de desenho ou de recursos financeiros. O espaço só se expande na medida dos financiamentos. Quando o objetivo é apenas produzir um evento e dar notoriedade aos participantes, no reduzido meio artístico, nada disso é problema. Sempre existe a chancela de algum discurso. Mas quando se pretende de fato estabelecer uma reflexão sobre o contexto urbano contemporâneo, tentando atingir o público real e desavisado, a realização da obra é fundamental. 

O fator espetáculo sempre foi uma das principais maneiras de impressionar o leigo. Só se exacerbou em nossos tempos. Geralmente, se apóia nas grandes dimensões, que só são grandes levando em conta a relação de escala com o entorno. Isto é desenho. Das três grandes artes tradicionais – pintura, escultura, arquitetura – só a última guarda intata, ou até amplificada, pelo desenvolvimento tecnológico constantemente aplicado, a capacidade de produzir espetáculos. É fácil ver seu uso contemporâneo a serviço de interesses políticos e econômicos, continuando a tradição. Creio que a possível relação de escala entre pintura, escultura e arquitetura, começa a se esgarçar com a industrialização. Há lugares onde está completamente rompida. E é no contexto urbano das grandes metrópoles, tendente cada vez mais ao gigantismo, onde se concentra o possível público e o interesse em produzir espetáculos, que se pretendem introduzir contra-espetáculos - ou espetáculos outros. Mesmo com o apoio de novas tecnologias e grandes investimentos, a escala permanece demasiado menor. Suspeito que o investimento em arte simplesmente não dá um retorno comparável a um grande empreendimento imobiliário. Existem, é claro, intervenções menos oficiais, mais discretas, independentes ou clandestinas – que podem ser oficializadas – coexistindo no espaço urbano, com desníveis enormes de qualidade artística. São parte de nossa paisagem.

Sou cético quanto à eficiência dos grandes eventos temporários – que precisam ser temporários para gerar sua cota de espetáculo - para produzir algum efeito social apreciável, alguma reflexão a partir da arte. A arte será um meio eficaz para esta finalidade, justamente pelo desconhecimento que registramos? Ela só acontece na medida da recepção do público. Um filme não foi capaz de impedir a reeleição de George W. Bush, mas as reportagens televisivas, veiculadas com freqüência durante anos, tiveram grande papel contra a Guerra do Vietnam. Não será melhor tentar usar as possibilidades dos media, em lugar de pretender transformar a arte em reportagem política? Uma metrópole como São Paulo mal nota iniciativas como Arte Cidade. Qual o poder de alguns meses de uma Bienal de Arte? Os eventos passam, a cidade fica – inalterada. Ou melhor, quem continua agindo, ininterruptamente, são as forças políticas e econômicas que procuram dirigir, bem e principalmente mal, o urbanismo. Acredito mais nas ações cotidianas e discretas, como aulas, livros, internet e conversas. Inserir um trabalho no contexto urbano, com poucas possibilidades de prolongamento interno no público, não produz necessariamente arte pública. Creio que seria mais efetivo tornar toda arte pública, em primeiro lugar através da escola, de maneira emancipadora, permitindo a cada interessado o contato por si mesmo, sem intermediários - por vezes mal treinados - entre o olhar e a obra.

                No entanto, existiriam todas as condições para um contato maior com as artes visuais, através de reproduções de todos os tipos e originais múltiplos. Não que isso substitua a presença de uma obra, mas não esqueçamos o papel do espectador: alguns são capazes de captar mais através de uma reprodução, do que outros frente à obra real. Qual é o nível de envolvimento real de tantos espectadores, com condições plenas de estarem presentes frente ao original, achando “maravilhoso”? Quantos estariam apenas cumprindo uma obrigação social? Não creio existir uma impossibilidade para acompanhar as mudanças no campo artístico. Mas a grande maioria das pessoas não sabe que estão acontecendo, ou não sabe onde poderia se informar, ou só tem conhecimento das conseqüências mais secundárias. Ou simplesmente não se interessa. Para que o interesse deixe de ser minoritário, de novo, a escola pública seria fundamental. Ainda mais no Brasil, onde as reproduções em livros de arte e até o cinema permanecem fora do alcance de muitos. A pirataria cultural teria um lado de democratização, além de ser uma face do crime organizado? A democratização através da imprensa foi efetivada por uma maioria de editoras buscando o lucro. Vejo pessoas comprando pilhas de dvd’s e cd’s legais e ilegais. No meio de tudo, é fácil encontrar filmes e obras musicais importantes. A internet também poderia oferecer informação ilimitada, mas sem o senso crítico formado na escola haverá a transformação em conhecimento? 

                A modernidade assumiu bastante uma postura de desafio ou indiferença em relação ao grande público, e a obra única facilita isso. As obras multiplicáveis em grande escala dificilmente podem ignorar os públicos mais amplos. Correm, é claro, o risco de se tornar apenas um empreendimento comercial. Sempre existiram artistas com a consciência de estar trabalhando para poucos, pelo menos durante o tempo de suas vidas, intransigentes com a qualidade de sua obra, ou operando sem buscar fama e repercussão. É digno e ético.  Mas o risco comercial pode continuar existindo, mesmo quando o público se reduz. Comprometer um trabalho, dirigindo-o pela construção da fama, a concessão de bolsas de estudo ou residências artísticas é menos comercial? Não creio que o artista com a capacidade de realizar um trabalho de alto nível deva se limitar, mas também não se pode esperar que, no presente, em curto prazo, tantos se disponham aos esforços exigidos por certas obras. É muito mais provável o desinteresse. Como e porque um público mais amplo se interessaria por questões apenas internas das artes? O sistema das artes visuais opera em circuito fechado. Há galerias com acessos que passam despercebidos ao não iniciado, ou não convidam ao ingresso. O público desejado é o potencial comprador, ou aqueles que determinam o valor da obra exposta. O que é exposição para os já informados pode ser ocultamento para o resto da cidade. Recebi há poucos dias uma edição do Canal Contemporâneo estimando em cerca de 8000 os participantes. É muito para uma rede de relacionamento online? Trata-se apenas de um indicativo, mas dá o que pensar. Será só este o número de interessados em arte contemporânea no Brasil? E também não subestimemos sistematicamente o espectador: alguém não preparado pode simplesmente estar percebendo a falta de sentido, onde um espectador treinado - ou condicionado - projeta sua pretensão de conhecimento.

                Creio que antes de distinguir entre moderno e contemporâneo é preciso distinguir entre o que é arte e o que não é. Lembremos que ao falar em Arte Moderna e Arte Contemporânea estamos incluindo todos seus academismos, que habitam, talvez majoritariamente, os espaços expositivos. Seria muito cômodo se o “academismo” assumisse para sempre as formas canonizadas pelas Academias de Belas Artes. O academismo é uma atitude, não uma forma fixa. Uma atitude extremamente difundida, não restrita à arte, inevitável em alguns momentos, é imitar modelos crendo ser original. No campo artístico, sua forma é camaleônica. Assume a aparência do que permite obter as regalias e poderes possíveis num determinado momento. Nem todas as Academias de Belas Artes merecem ser entendidas em sentido pejorativo, nem sempre foi uma instituição retrógrada. Mas durante largos períodos ser acadêmico era condição para ter acesso, por exemplo, às melhores encomendas ou às formas vigentes de residência artística no exterior. Hoje, é preciso apresentar-se com uma roupagem contemporânea extrema. Não deve haver nada que explicite o academismo, a não ser, é claro, a própria obra (para quem puder e quiser perceber). A academia hoje não tem domicílio definido num edifício neoclássico e não se assume, mas existe. E não esqueçamos também que o academismo não é privilégio do artista, mas se estende a críticos, curadores, historiadores, galeristas, professores e outros artistas, e todos que controlam o acesso e a permanência no circuito artístico. Estes criam os interesses que norteiam o artista acadêmico. Uma obra nem sempre é exposta por suas qualidades, mas também por uma rede de relações pessoais, de interesse, julgamentos apressados, enganos, modismos, limitações mentais. A não ser que acreditemos viver numa época em que todos os artistas estão radicalmente comprometidos com seu trabalho, críticos e curadores clarividentes e constantemente íntegros, e não haja meios privilegiados pela sua capacidade de gerar espetáculos. Não há nada novo ou contemporâneo nisso, mudam os modelos a se imitar. A “academia”, há tempos, tende a ser duchampista, a pior coisa que poderia ter acontecido a este artista. Academismo é tentar transformar a dúvida em garantia.

  

3) Quando você afirma: “No caso das artes visuais há um componente intelectual inevitável, mesmo sem buscar outras conceituações: o desenho entendido como pensamento visual, compreensão, organização ou desorganização do espaço, olhar qualificado que recebe e projeta”, você parte do pressuposto de que o desenho seja primordial às artes visuais.  E há quem no próprio meio da arte discorde. Esta situação de desacordo a respeito disto em que os próprios artistas se encontram contribui para a confusão sobre o que são as artes visuais hoje ou sobre o que faz o artista. Muitos artistas visuais hoje sejam eles participantes ou não, do círculo acadêmico, não percebem uma necessidade de um pensamento visual e inclusive assumem não saber desenhar ou não praticar o desenho em nenhuma das suas inúmeras formas. A incapacidade da qual você fala, de analisar visualmente uma imagem por parte dos acadêmicos, é também uma incapacidade de muitos dos que se denominam artistas visuais. Estes compartilham da visão de insuficiente intelectualidade da arte que, conforme você identifica: “se enraíza no histórico menosprezo pelo trabalho manual, pelas artes mecânicas e pelo conhecimento sensível e material” e se esquecem ou não percebem que “técnica é cultura”, acreditando que a única forma de arte legítima é aquela cujos projetos se embasam em conceituações teóricas, desconsiderando que a materialização de um objeto ou imagem seja um processo de pensamento que exige concentração e conhecimento e que produza conhecimento tanto para o artista quanto para o público. Inclusive, antes desta situação atual das artes visuais, houve quem defendesse algo quase oposto. Citando um exemplo controverso na academia, para Rudolf Steiner é preciso visualizar para meditar e a meditação é uma forma de exercitar o pensar. Neste caso, visualizar vem antes do raciocínio elaborado pela palavra, a palavra seria o reconhecimento do raciocínio visual, do raciocínio primeiro (o conhecimento). Seria quando o raciocínio visual no trabalho de arte é secundário é que se perde a dimensão pública da arte? Como a criação de públicos especializados dificulta as finalidades da universidade?

 

M. B. - Primeiramente, o desenho faz parte da visão, da mente e do corpo, não está confinado à arte.  É usado constantemente, mas sem consciência e conceituação. Pouco se percebe o deslocamento do corpo no espaço como desenho, os roteiros e projetos feitos e desfeitos, o ato de se vestir, as mudanças qualitativas da experiência visual na metrópole, as mudanças de luz e espaço com o passar das estações.

                Depois, existem pouquíssimos cursos em São Paulo e no Brasil onde o desenho é discutido com a profundidade necessária. É perfeitamente possível formar-se em artes visuais, fazer pós-graduação e participar do circuito artístico sem entender o que é desenho. Nos cursos de História da Arte, em geral, pouco se vê o desenho como realização gráfica independente e pensamento visual. Quase tudo gira em volta da pintura e da escultura. 

                Para entender de fato o desenho é preciso usá-lo como maneira de buscar e visualizar o próprio pensamento, meio de realização de projetos, instrumento da dúvida. Cursos não podem dar mais que uma fundamentação básica, a ser desenvolvida na medida das necessidades. Não é difícil perceber como é pequena a quantidade de alunos formados em artes visuais com um real conhecimento do desenho. Muitos se limitam a praticá-lo como obrigação nos cursos específicos, que poderiam ter um papel emancipatório se as buscas continuassem de forma independente.

                É fácil notar que boa parte das artes visuais recentes é transposição de conceitos verbais para o plano visual. Para alguns artistas, é mais importante a apresentação ao público certo do que o próprio trabalho. A diferença é grande em relação ao pensamento visual. É comum perceber que boa parte dos artistas visuais tem noções parcas do desenho, a ponto de concebê-lo, hoje, nos moldes da academia de Belas Artes, inevitavelmente ligado à figuração, dependente apenas de técnicas gráficas, oposto à pintura, aparentemente imutável, desligado da história. É a este desenho que se referem ao considerá-lo dispensável hoje. Não conseguem pensá-lo como uma língua viva, totalmente conectado com o dinamismo do pensamento de um artista, presente em qualquer meio. É uma confusão semelhante à dos leigos com a figuração, porém mais grave, tratando-se de especialistas. Ao ouvir certas referências negativas ao “desenho do Séc. XIX” tenho a impressão de ouvir uma crítica à academia do séc. XIX pela academia dos sécs. XX e XXI. E não posso deixar de sorrir quando ouço falar na “questão da linha”. Ela é um elemento básico e cotidiano de pensamento visual, expressão visível de um processo sensorial e reflexivo de busca e construção, como a linha do mesmo lápis em busca do texto. Sua presença é tão constante que quase se esquece. As verdadeiras questões são bem maiores. Se a linha vira questão a arte anda muito pequena.   

                Há outra questão, esta sim real, que me parece afetar o estudo do desenho. É onde a incapacidade se mostra mais clara e dolorida. Torna-se evidente demais a necessidade de esforço e persistência para conseguir ampliar os limites. Ora, aproximadamente no início dos anos 80, foi sendo forjado o mito do sucesso a curtíssimo prazo, que partindo da área financeira foi agigantando as proporções do imediatismo. O meio artístico é sensível a este tipo de sucesso, e tal atitude dificilmente deixaria de se infiltrar. O desenho se opõe naturalmente à pressa, e também não garante nada além de alguma habilidade a praticantes mais pacientes, porém sem inquietações. Mas o desenho é uma capacidade a serviço de um fim, tanto chave quanto trava para a expressão; limite ético, confronto com o mundo, obstáculo necessário na rota do conhecimento, como qualquer linguagem. 

 

 4) Na sua tese você fala em diversos momentos em ‘rigor’, ‘rigor íntimo’, ‘verdadeiro rigor’, ‘rigor possível’. Como definir isso para quem não reconhece o raciocínio visual?

 

                      M. B. - O rigor, a meu ver, deveria começar por uma indagação contínua: existe mesmo a necessidade (que não tentarei definir) de tentar e continuar a tentar fazer “arte”? Ninguém é obrigado a ser artista sem a necessidade de sê-lo. Ninguém precisa ser artista a vida inteira. Quem o é talvez só sirva para isso. Creio que sempre houve gente demais se aventurando a ser artista por motivos pequenos. E, claro, a aspiração sincera nada garante. Só aumenta os riscos.                            Optando-se pela tentativa, o rigor continua na escolha de meios/técnicas/materiais/ações a serem efetivados, a fim de que o desejo, a idéia deflagradora não se percam totalmente. Parece-me inútil tentar estabelecer um procedimento geral para as operações artísticas: não há artista genérico. Mas sugiro que estas escolhas já são desenhos, nos vários sentidos possíveis. 

                O mesmo rigor de um texto está implícito nesse processo, já que se trata de uma linguagem poética literalmente materializada. Como em toda linguagem, tudo significa. O possível sentido da obra realizada depende de todos os atos realizados. Podemos pensar numa forma em movimento, onde materiais, técnicas, instrumentos - ou sua omissão – se integram ao pensamento como a escrita verbal. É neste rigor que Duchamp se diferencia dos duchampistas. Se o seu uso dos procedimentos não fosse preciso, as operações mentais não se completariam, e não haveria tanto interesse pelas interpretações.

               A colagem é um dos grandes princípios de desenho, não sua negação. Longe de ser uma simples acumulação ou justaposição, demanda o mesmo rigor de um retrato. Selecionar e reorganizar imagens e/ou objetos de naturezas diferentes, e tudo o mais que o conceito de colagem abarca, solicita um olhar tão educado quanto qualquer forma de desenho, e muitas vezes mãos hábeis. Sempre se trabalhou também a partir de outras imagens, inclusive como apropriação. Selecionar o objeto da apropriação não é uma forma de desenho? Interpretar imagens de outra natureza, fotografar o fluxo da televisão, pintar partindo de imagens coletadas na internet não é desenhar?  Perceber aspectos no caos urbano capazes de deflagrar uma ação artística, relacionar escalas no espaço real para uma possível instalação, levar em conta o contexto visual onde o graffite vai ser pintado, não seriam atos de desenho? Se houvesse mais competência, talvez não se ajudasse certos arquitetos a degradar nossa cidade com a repetição dos piores modelos internacionais.

Mas concordo que arte como “sacadinha” não precisa de desenho.

Mas a arte é uma atividade de difícil definição...

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