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Cativa [A Natureza da Natureza], Flora Assumpção

Da artificialidade da natureza,

da naturalidade do artifício

 

 

Icaro Ferraz Vidal Junior é pesquisador, escritor e curador independente. Atualmente realiza estágio pós-doutoral no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná, com bolsa PNPD/Capes.

 

 

 

Em Cativa [A natureza da natureza], Flora Assumpção ativa o espaço da Galeria Janete Costa instalando uma série de elementos, formal e materialmente heterogêneos, de modo a compor um sistema e fazer jus à complexidade que o título da exposição evoca ao referenciar o primeiro tomo do método formulado por Edgar Morin: A natureza da natureza. Dizer que os elementos que Flora propõe ao público do Parque Dona Lindu integram um sistema é, antes de mais nada, um convite para que o visitante da exposição resista ao hábito de se relacionar com o mundo que o rodeia (aqui, o ecossistema criado pela artista) como uma série de objetos independentes que ele, sujeito, poderia vir a conhecer plenamente e controlar. A história das ciências modernas testemunha a persistência deste hábito de objetivação na relação com os fenômenos naturais e na produção de suas representações visuais. Olhar objetivamente para o mundo significa percebê-lo como “constituído de objetos isolados (em um espaço neutro) submetidos a leis objetivamente universais”[1]. É impossível adentrar Cativa com este olhar sem sacrificar o que parece estar no cerne da poética de Flora Assumpção, notadamente, uma aposta na supressão das distâncias que separam e isolam o natural do humano, do artificial, do cultural. Diferentemente de uma exposição de arte onde se busca estabelecer um diálogo entre obras de arte pré-existentes e fechadas sobre si, em Cativa [A natureza da natureza] o todo parece exceder a soma de suas partes, e as obras-organismos que integram este bosque tomam parte em relações simbióticas.

O gesto da artista de configuração deste ecossistema poético-ficcional parece, em primeiro lugar, mimetizar o élan vital que se manifesta na impressionante resiliência de seres vivos dos mais variados reinos. Uma vegetação rasteira, em feltro e tecidos de texturas variadas, desdobra-se sobre o chão da galeria, como se um algoritmo biológico assegurasse a reprodução de desenhos e padrões ao longo de várias ordens de grandeza (o universo numa casca de noz), ad infinitum. A analogia serpente-corrente, que aparece em obras anteriores da artista, reveste aqui a parede sob o mezanino da galeria em uma versão na qual a penugem colorida de um beija-flor hibridiza-se digitalmente com os elos da corrente, reiterando e ficcionalizando esta persistência da geometria da natureza para além dela mesma. Esta imagem convive com uma vegetação sintética, resultante de um meticuloso trabalho de dobraduras que reproduzem os padrões de uma vegetação orgânica. A pele da serpente e a imagem híbrida da corrente-beija-flor apresentam uma inquietante semelhança, que nos permite reivindicar que esta imagem é efetivamente dotada do estatuto de objeto estético, tal como este se encontra formulado na filosofia de Gilbert Simondon. Segundo o filósofo, o objeto estético permite intuir a unidade mágica originária do mundo, perdida por uma defasagem ligada a processos de objetivação do mundo em pensamento técnico e de subjetivação do mundo em pensamento religioso[2]. As serpentes e as plantas de Flora Assumpção parecem povoar um mundo anterior a estas divisões, que hoje se inscrevem entre natureza e cultura, entre sujeito e objeto, entre arte e ciência.

 

 

 

 

 

 

 

Mas é importante observar que o que parece viabilizar este acesso intuitivo à unidade mágica originária do mundo não se limita, na poética de Assumpção, às analogias que suas imagens figurativas nos permitem acessar – plantas suculentas e pastas de plástico; serpentes e correntes. Suspeitamos que este acesso se dá a partir de uma conciliação, rara e contra-intuitiva, entre isto que chamamos de um mimetismo do élan vital – esta incorporação, no gesto criador, de um impulso que se apresenta, através de processos de reprodução, repetição e pequenas diferenciações, como análogo a uma força natural – e uma aposta em procedimentos técnicos, ligados ao trabalho manual, ao artesanato, às artes decorativas, através dos quais o trabalho humano não se oculta. A natureza sintética criada pela artista-demiurga escova à contrapelo as perspectivas que concebem as relações entre a natureza e o artifício como imiscíveis. Às questões apresentadas por Nietzsche em sua gaia ciência – “Quando teremos a natureza inteiramente desdivinizada? Quando nós, homens, com a pura natureza, descoberta como nova, redimida como nova, poderemos começar a nos ‘naturalizar’” – Clément Rosset propõe uma resposta que Flora Assumpção parece desdobrar e reverberar plasticamente nesta instalação: “o homem será ‘naturalizado’ no dia em que assumir plenamente o artifício, renunciando à própria ideia de natureza, que pode ser considerada uma das principais ‘sombras de Deus’”[3].

Através de uma virtuose técnica que se desdobra nesta ocupação da arquitetura modernista de Oscar Niemeyer, a artista consegue esquivar-se de qualquer ilusão naturalista, e se inscreve na fronteira entre a natureza e o artifício. A definição de natureza a que chegamos a partir da poética de Flora Assumpção não se restringe à crença segundo a qual “subjaz uma obscura diferença, invisível porém essencial, entre o que se faz ‘por si mesmo’ (natureza) e o que se produz, se fabrica (artifício)”[4]. Parece que Flora intui que esta ideia de natureza não serve a outro propósito senão o de isolar e proteger o humano do real do mundo. A história do conceito de natureza, frequentemente definida a partir de seu caráter irredutível à vontade e ao controle humanos, mostra-se demasiadamente antropomórfica. Mas não se trata, em Cativa [A natureza da natureza], de negar esta indiferença da natureza diante de nós. Trata-se, antes, de um sutil deslocamento poético-conceitual que investe a natureza não a partir do que ela não é, mas a partir de uma atenção a suas formas e padrões, cujas inscrições a artista atualiza neste bosque sintético que prolonga os jardins do Parque Dona Lindu no interior da Galeria Janete Costa. O exuberante bosque de Flora Assumpção parece afirmar, a um só tempo, a artificialidade da natureza e a naturalidade do artifício. 

 

 

[1] MORIN, Edgar. La méthode: 1. La nature de la nature. Paris: Éditions du Seuil, 1977, p. 96.

[2] SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier, 1989, pp. 159-178.

[3] ROSSET, Clément. A anti-natureza: Elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989, pp. 5-6.

[4] Idem, p. 14.

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